terça-feira, 11 de março de 2014

Simplicidade e introspecção

 As atividades executadas nesse mundo colocam o indivíduo em contato com a roda de samsara, palavra sânscrita que se refere ao ciclo ininterrupto de nascimentos e mortes. Em outras palavras, sob o impulso das suas atividades piedosas ou impiedosas, ele ora sobe a um planeta material superior, ora desce a um planeta inferior, ora vem ao mundo numa família abastada, ora nasce numa família carente, ora possui um corpo saudável e vigoroso, ora se vê às voltas de enfermidades e moléstias. Seus prazeres e sofrimentos são de natureza tão efêmera que podem ser comparados às experiências de uma criança tola que se diverte num carrossel colorido.

Aquele que se deixa cativar pelo encanto da poderosa energia ilusória busca desesperadamente por uma posição segura e confortável e, como não se satisfaz com os recursos oferecidos por este planeta, se lança no espaço, em direção à Lua, Marte, Vênus, etc. Mas, será que existe algum planeta nesse mundo que seja imune às dores da velhice, da doença e da morte? A resposta dada pela Bhagavad-gita é que a verdadeira felicidade, segurança e conforto só serão encontrados além dos limites do Universo material, pois as dores supramencionadas estão em qualquer canto desse mundo. Ao entendermos isso entendemos também que a vida humana não se destina a desfrute sensorial temporário, mas à autorrealização espiritual. Empenhar-se, portanto, na autorrealização significa agir em harmonia com o princípio de “tirar o melhor proveito de um mau negócio”, significa aceitar tão somente as necessidades básicas da vida e não deixar que a energia humana seja desviada para outros propósitos. Significa não estar interessado em fomentar ou se envolver com coisas que serão esquecidas no decorrer do tempo e que, portanto, não são diferentes dos murmúrios das ondas do mar. Significa entender claramente que a meta deve ser restabelecer nossa relação com Deus, a qual foi interrompida quando nos lançamos na roda de samsara. Em suma, quem se empenha em autorrealização preza por vida simples e pensamento elevado, o que é muito diferente de uma vida animalesca, sem cultura, educação ou moralidade. Na verdade, num contexto de simplicidade e introspecção, a arte, a ciência, a filosofia e tudo mais são muito benvindos, caso se prestarem para estimular o reencontro com o divino. No passado, muitos dos verdadeiros artistas, cientistas e filósofos não viveram em construções palacianas, mas, mesmo em suas cabanas produziram imensos tesouros de sabedoria. Em outras palavras, quando em demasia, os confortos materiais podem ser prejudiciais para o progresso espiritual. A conclusão é que, através da simplificação da vida, cria-se uma condição muito auspiciosa onde há uma grande reserva de energia humana para ser utilizada na autorrealização espiritual. 

domingo, 16 de junho de 2013

Nada disso é real, embora pareça ser

Apesar de parecer uma realidade, este mundo material não passa de uma ilusão. De fato, o Bhagavatam compara esta admirável criação da energia externa do Senhor a uma miragem no deserto onde não existe água, embora, pelo efeito da miragem, pareça existir. A realidade, da qual este mundo é meramente uma sombra, está no mundo espiritual, e a menos que nos rendamos aos pés do lótus do Senhor seremos incapazes de vislumbrá-la...

Nesse momento, estou a bordo de uma grande aeronave que voa a uma altura impressionante e percorre centenas de quilômetros por hora. O sol acaba de se por e, à medida que sua luz se esconde, torna-se possível contemplar dezenas das milhões de estrelas do céu. O voo está lotado, os comissários passam com os carrinhos de mão, oferecem água, salgadinhos... – mas nada disso é real, embora pareça ser. Há alguns minutos tudo estava silencioso. Ainda estava claro e eu espiava pela janela o deslocamento apressado das nuvens no céu, enquanto notava, na terra, ao longe, o crescimento de vários tipos de vegetação. Bastou que as caixas de som divulgassem o início do serviço de bordo para que a paixão tomasse conta da cena, fazendo com que os passageiros – homens de negócios, famílias em férias, casais enamorados – se agitassem. Na cabine, agora, depois de acionarem o piloto automático, provavelmente os pilotos se deliciam com seu lanchinho vip. Ó, quão poderoso Krishna é! Quão inconcebíveis Suas diferentes energias são! Quão obtusa é a nossa mente que não percebe a manifestação cósmica e suas variedades como simples interações dos três modos da natureza! Quão grande é nossa cegueira que não nos deixa ver o verdadeiro piloto por trás de tudo!...

Embora todas as coisas mencionadas pareçam realidades tangíveis, num próximo momento tudo se evaporará exatamente como as nuvens do céu. Ou seja, a aeronave e seus pilotos, tripulantes e passageiros, os homens de negócios e seus negócios, este computador de mão, meus dedos, que com a ajuda das teclas procuram registrar ideias, assim como eu mesmo – nada disso é real, embora pareça ser. Ou, se preferir, tudo é tão “real” quanto as nuvens que contemplo no céu. É devido a ela que existe a chuva e, porque chove, existe esta grande abundância de vegetação efêmera, embora, em última instância, a nuvem, a chuva e a vegetação, inevitavelmente desaparecerão, assim como esta aeronave, seus tripulantes, este computador e suas teclas, eu, meus dedos e tudo o mais. Somente o céu permanecerá, com sua incontável variedade de luminárias.

Sri Krishna, o Absoluto, ou summum bonum, pode ser comparada ao céu, pois somente Ele permanece eternamente. As outras coisas, que não diferem em nada das nuvens passageiras, desaparecerão uma a uma. E, assim como Sri Krishna permanecerá, permanecerão também os verdadeiros eus, ou almas espirituais, que, por serem partes integrantes Dele, se comparam às luminárias do céu.

Enquanto o homem comum se atrai unicamente pelas nuvens temporárias; os introspectivos, ou sadhus, colocam seu interesse no céu eterno e sua variedade de luminárias. A conclusão é que, se queremos aprender sobre aquilo que é real, que faz parte da Verdade Absoluta, devemos buscar a companhia destes sadhus. Ouvindo-os, as amarras que nos prendem a diversas afeições pelas nuvens ilusórias e suas criações serão cortadas e o caminho da liberação que nos conduz ao reencontro com o Absoluto irá se descortinar diante de nós. Caso contrário, sob o efeito ameaçador da sombra da verdadeira realidade, permaneceremos desnorteados, sem compreender quem é o verdadeiro piloto por trás de tudo.
 
– Belém, PA, 07/06/2013

terça-feira, 21 de maio de 2013

Casando-se “por dentro”


Jung falava que dentro de todo ser humano existem dois princípios: o masculino e o feminino. Ao casar-se “por dentro”, a razão estaria se unindo ao sentimento, o que produziria a desejada unidade perfeita. Expandido essa ideia, alguns pensadores acreditam que esses dois princípios se dividem também na forma de Ocidente e Oriente, e que, portanto, um casamento entre eles seria muito bem vindo.
O Ocidente representaria o aspecto masculino, o dominador; enquanto o Oriente, a Índia em questão, o feminino, o acolhedor. Esse ponto de vista ganha força ao constatarmos o impacto que o sistema industrial ocidental provoca na Índia. Ou seja, quando separada da visão do sagrado, a racionalidade exploratória ocidental mina a percepção que todo ser humano leva dentro de si da presença divina na natureza e nos homens. Assim, quando desequilibrado ou pervertido, o lado masculino (purusha) representa o aspecto agressivo, controlador, dominador; enquanto o feminino, o ingênuo, o inocente, o extremamente dependente.
Não há como negar que, com sua mentalidade excessivamente racional, o Ocidente tem produzido um povo bastante fechado em seu próprio ego. Quem duvida disso deve observar seus gestos ríspidos e desajeitados, sua maneira monótona de se vestir, sua ausência de cordialidade. Em contrapartida, o formigueiro alegre e abundante do povo indiano, com seus turbantes e saris multicolores, lembram a beleza variegada e natural de um jardim florido... Isso porque a Índia tem um jeito próprio de reduzir ao mínimo as necessidades da vida. A maioria usa uma camisa e o chamado dhoti – um simples pano da cintura até os pés; enquanto as mulheres se vestem de sari e uma miniblusa para cobrir os seios, sendo que essa peça é relativamente recente e frequentemente dispensável para as mais velhas. Eles pensam, “Para que uma casa, uma vez que é possível viver numa caverna ou abrigar-se junto a um terraço de um Templo?”...
 No caso de se viver numa casa, “Para que mobília e fogão, uma vez que é possível dormir numa esteira e, junto ao chão, acocorar-se e fazer um simples foguinho para cozinhar?”. Uma existência tão fora da nossa realidade que antes de visitar a Índia eu não teria julgado possível. Reduzindo a vida a uma simplicidade absoluta, parece que eles vivem inteiramente desligados das coisas do mundo, dependendo da providência divina para as necessidades básicas como comida, abrigo e vestuário. Certamente, era esse tipo de pobreza de espírito que Jesus se referia em seu célebre Sermão da Montanha. Pobreza como desapego do mundo. Castidade como desapego da carne. Obediência como desapego do falso ego. Renúncia do 'eu' e do 'meu'.
É claro que nem todos os indianos são assim, mas não há como negar que a cultura indiana, de um modo geral, exala muito mais desapego e despreocupação. O mais curioso é que, embora tenha como característica a renúncia ao mundo, o hinduísmo construiu templos de arquiteturas avançadíssimas, cobriram as paredes das cavernas com pinturas refinadas, construíram grandes balneários (kundas) e outras belezas incomparáveis e fantásticas! Isso porque, não importa possuir ou não objetos materiais, contanto que não se esteja excessivamente preso a eles e não se tenha uma dependência vital deles. Em outras palavras, a verdadeira vairagya, ou renúncia, nunca se opõe à missão de servir ao mundo. Portanto, o verdadeiro renunciado, estando livre do ahankara, falso ego, assume o compromisso de servir o mundo, pois, devido à sua visão espiritual, ele enxerga as coisas como elas são e sabe usá-las como devem ser usadas. Ele é um atmarama, uma alma comprazida em si mesmo, devido à sua união com a paramatma, a Alma Suprema, que habita em seu interior.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Atitude submissa

Além de supervalorizar os trabalhos de pesquisa e a erudição, o mundo acadêmico ocidental dá votos de confiança exagerados aos poderes dos indivíduos. Mas, discordando dos métodos acadêmicos atuais, o sistema atemporal védico – que não confia em absoluto na especulação mental e no uso dos sentidos limitados e imperfeitos – recomenda enfaticamente que o estudante procure um mestre espiritual tattva-darsi (vidente da Verdade), e, numa atitude submissa, se renda a uma disciplina espiritual. É claro que, para os ouvidos ocidentais, a palavra “submissão” não soa muito bem, já que, do lado de cá, sempre fomos inspirados a privilegiar os métodos e abordagens apoiados na especulação mental. Assim sendo, o método “submisso” no qual os estudantes obtêm conhecimento pelo processo que descende de mestre a discípulo é frequentemente interpretado como restrição dogmática ou doutrinária – isso quando ele não recebe a acusação de repressor da inteligência natural.
Mas, além de agitar o falso orgulho, qual seria o verdadeiro problema em se aceitar a ajuda de preceptores que, além de terem se dedicado a um profundo aprendizado, se submeteram também a rigorosas disciplinas espirituais e foram devidamente treinados na formação de caráter?...
Para dizer a verdade, nem a educação universitária consegue fugir da regra da submissão, pois, acaba dependendo também dela, já que todo aluno acaba se submetendo às diretrizes de um professor. Eu me lembro de uma palestra de Srila Acaryadeva, meu preceptor (que, certamente, é um autêntico tattva-darsi), em que ele dizia que um dos mais graves problemas da educação universitária é que eles inventaram um jogo com regras caprichosas e arbitrárias que chamam arrogantemente de método científico. O futebol, por exemplo, autoriza somente o goleiro a pegar a bola com as mãos, embora, no vôlei e no handebol, as regras sejam bem diferentes. Do mesmo modo que, com visão ampla, seria inaceitável afirmar que o futebol é o único esporte verdadeiro, seria igualmente pretensioso e inadmissível considerar o método acadêmico como o único científico – uma vez que este método não passa da criação de um simples jogo com suas próprias regras.
Em outras eras, onde a atmosfera era bem mais favorável, o “jogo” era “jogado” por filósofos e cientistas muitíssimo mais inteligentes, que partiam da premissa de que a busca por respostas e explicações não era diferente da busca por Deus, a origem suprema. Portanto, seu “jogo”, com regras muito mais avançadas e contando com a ajuda de fontes espirituais, era muito mais interessante. Por outro lado, por ater-se nas experiências empíricas, o atual modelo acadêmico é um completo fracasso quando tenta perceber as verdades além do alcance do ser humano. De fato, é uma ingenuidade absurda acreditar que Deus e Suas verdades superiores poderão ser compreendidos através da manipulação e controle por parte do cientista. Definitivamente, somente um fanático petulante acreditaria na possibilidade de fazer de Deus sua própria cobaia! Assim, o método empírico só poderá ajudar – quando muito – a compreendermos coisas relativas ao universo material. Entretanto, além desse conhecimento material relativo, existe o conhecimento transcendental que diz respeito às coisas situadas além do nosso limitado campo de visão. As escrituras védicas, portanto, revelam informações que são inconcebíveis para os nossos sentidos ou raciocínios materiais, mas que, através das práticas de yoga e meditação – uma metodologia científica espiritual – podem ser realizadas e percebidas diretamente.
Basta que o estudante receba orientação de um guru tattva-darsi, o que torna desnecessário o trabalho de pesquisa. Ao aceitar a iniciação de um guru, que não somente acredita no que está ensinando, mas o pratica fielmente, um novo campo de conhecimento se descortina diante do discípulo, pois é bem mais fácil compreender as escrituras por ouvir instruções de alguém que esteja pleno de realizações pessoais do que por estudar por conta própria a palavra escrita. Além disso, o guru é um representante vivo da sucessão discipular e traz consigo os ensinamentos dos mestres antecessores. Na verdade, o que qualifica o guru não é seu conhecimento acadêmico ou seu brilho intelectual, mas sua retidão de caráter e sua posição acima do desfrute egoísta e sua condição de liberdade da escravidão das demandas corpóreas. Convicto de que o conhecimento espiritual traz as verdadeiras soluções para os problemas (que são sempre de ordem material), ele pessoalmente leva uma vida bem-aventurada em união com o Supremo e todas as suas instruções são compatíveis tanto com o seu comportamento quanto com os ensinamentos originais dos Vedas. É muito raro encontrar tal grande alma.

Além das verdades relativas

“Como surgimos, como fomos criados?” – foi assim que um senhor idoso da plateia mostrou uma curiosidade tipicamente científica. Antes mesmo de eu dar início a minha resposta, ele falou sobre sua ideia da nossa ancestralidade dos macacos, das bactérias evolucionistas... Meu Deus! Onde foi que eu errei? Meu discurso, que era tão ingênuo, girava em torno das qualidades da alma: aquela que nunca nasce, nunca morre, é eterna e primordial...
Respondi-lhe inicialmente dizendo que só poderia falar de criação do corpo material, pois, segundo a Gita, a alma é sempre existente e nunca é criada. Mas, ele insistiu: “Somos produtos do encadeamento de reações químicas e, pela influência de leis mecânicas cegas, nos desenvolvemos...”. É claro que demonstrei respeito pela sua ideia de ‘sopa cósmica primordial’, mas era imperativo que eu recuperasse a atenção da plateia que, calada, esperava alguma luz vinda de mim. Foi então que me atrevi: “Para mim, muito mais atraente do que a pergunta ‘como fomos criados’ é o questionamento filosófico ‘por que e para que existimos’, já que ele abre um leque altamente inspirador, pois pressupõe que por trás de tudo pode haver um legislador consciente que tem um plano primoroso e perfeito. Por outro lado, a questão ‘como surgi nesse mundo’ pede respostas meramente químicas, tipo ‘originalmente, éramos nada mais que um ovinho no ventre de nossa mãe, um tipo de feijãozinho, etc.’. Será que podemos nos contentar com a explicação de que não passamos de um ser mecânico, físico, uma máquina?”. Ao sentir que a maioria das pessoas voltara a relaxar em suas poltronas, parafraseei o grandioso Einstein: “Não posso acreditar que Deus esteja praticando um simples jogo de azar com o Universo!”.
Ora, as verdades materiais são relativas: o que hoje é verdade, amanhã deixará de ser, o que se aplica para uns não se aplica para outros. Verdades relativas se fundamentam no corpo, que nem sempre existiu e inevitavelmente deixará de existir. Tomemos o exemplo da posição de uma pessoa que em relação ao seu filho é pai, mas em relação a seu pai é filho. Do mesmo modo, o conceito de amigo, inimigo, esposo, patrão, empregado, controlador, controlado, etc., também são relativos. Por isso, o início do Vedanta-sutra é marcado pela seguinte orientação: “Vá além dessas verdades relativas e busque o brahman, o espírito – aquilo que para todos e em qualquer lugar sempre permanecerá verdade”. Segundo a Gita, esse brahman somos nós, o verdadeiro eu espiritual, a natureza absoluta que, independentemente da cobertura corpórea, da circunstância, do lugar ou do tempo, permanece inalterável. Ou seja, somos a alma não-nascida, primordial e sempre existente
(continua).

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

“Não há mais nada de novo para ser dito” ou “Leitura Ruminativa”

Eu estava palestrando quando percebi a chegada de um devoto que, mesmo estando à porta do Templo, preferiu não entrar. Permanecendo calçado, o dito cujo sorriu para mim, e enquanto dava uma breve olhada nas Deidades, juntou suas mãos em leve sinal de respeito, e sem entrar na sala e nem mesmo se curvar reverencialmente para Elas, se retirou.
Enquanto eu continuava a minha preleção, não consegui deixar de julgá-lo, “Que descaso com as Deidades!”, pensei eu, “Como ele nem coloca sua cabeça no chão para Jagannatha! Este devoto está todo errado!”, e continuei a comentar sobre o último verso falado por Krishna na Bhagavad-gita, quando Ele pergunta a Arjuna, “Você ouviu atentamente o que eu disse?”.
Um minuto depois chega mais um devoto. Este, sim, faz tudo certo: tira os calçados, entra na sala do Templo, faz dandavat para a murti de Srila Prabhupada, para as Deidades e para o vasinho de Tulasi. Olhando para mim e balançando a cabeça como se pedisse licença, ele atravessa a sala do Templo e desaparece pelos aposentos internos até voltar depois de alguns minutos com roupas devocionais, tilaka no corpo e pronto para fazer o puja no altar. Como o assunto da palestra girava em torno da importância da atenção às palavras de Srila Prabhupada registradas em seus maravilhosos significados, não pude resistir e acabei me valendo dos exemplos dos dois devotos que acabamos de mencionar. Ou seja, não é verdade que desejamos intensamente que os textos de Srila Prabhupada esmaguem o nosso materialismo, espantem nosso sentimentalismo, exorcizem o nosso impersonalismo? Então, por que, apesar do contato constante com seus escritos sagrados, isso não ocorre plenamente?... Será que a mesma postura de descaso que aquele “devoto todo errado” teve para com as Deidades não estamos tendo também para com os textos de Srila Prabhupada?...
Em outras palavras, há definitivamente duas formas de leitura: a passagem rápida e superficial sobre um texto ou a leitura cuidadosa e detalhada, um mergulho profundo no seu significado filosófico. A primeira classe de leitura – que não passa de uma simples busca por informação – poderia ser comparada ao devoto que abriu despretensiosamente a porta da sala do Templo, deu uma breve e desinteressada espiadela e, com a mesma frieza que chegou, saiu dela sem nenhuma atitude de serviço transcendental. A segunda, no entanto – a que tenho chamado de “leitura ruminativa” –, é totalmente diferente da postura de alguém que simplesmente abre o livro. Comparo esta ao segundo devoto que não apenas entrou no Templo, mas executou os devidos rituais purificatórios e se qualificou para adorar o Senhor.  Ou seja, por ser feita com uma atitude de total autoentrega ao texto, este humor de leitura permite que nos adentremos no mundo de Srila Prabhupada – um mundo místico onde o nosso eu pode se expandir ao ponto de se integrar ao significado transcendental. Uma boa maneira de praticarmos a “leitura ruminativa” dos livros de Prabhupada é entendermos claramente que os “Significados Bhaktivedanta” não são em absoluto diferentes dele, assim como o próprio Srila Prabhupada escreveu a um discípulo numa carta em outubro de 73, "As instruções dadas em meus livros devem ser aceitas como instruções pessoais. Quando lemos o Bhagavad-gita Como Ele É devemos entender que estamos recebendo instruções pessoais de Krishna. Não há barreiras físicas quando se trata de assuntos espirituais".  Em outras palavras, a nossa atitude ao lermos não pode estar limitada meramente a uma busca intelectual por informações, mesmo que sejam espirituais. E mesmo se, em nossas leituras, tivermos interesse em propagar tais informações imaculadas, ainda assim estaria faltando algo. Ou seja, “ruminar” diante do texto não significa apenas assimilar as instruções de Srila Prabhupada e repeti-las aos quatro ventos, mas introjetá-las e deixar com que elas criem uma verdadeira revolução interior. É claro que, de qualquer modo, ler os livros de Srila Prabhupada é sempre bom, mas certamente devemos mergulhar na leitura com o mesmo entusiasmo que teríamos diante da oportunidade de termos um darshan pessoal com Sua Divina Graça! De fato, qual a diferença entre estarmos em contato pessoal com ele ou mergulharmos em seus textos? Segundo a natureza da plataforma transcendental, a respostas seria, “Nenhuma!”. Caso contrário, o que significaria as seguintes palavras proferidas por ele: “Eu nunca morrerei. Viverei para sempre em meus livros"? Ou seja, se queremos que a potência de suas palavras penetre no âmago dos nossos corações, devemos estar totalmente ávidos pela sua associação, pois as escrituras dizem que um breve momento de verdadeira associação com um maha-bhagavata como ele pode nos promover à perfeição máxima da vida! Isso significa que não há necessidade de nos preocuparmos tanto com a quantidade de textos a serem lidos. Devemos, antes disso, observar a qualidade do nosso estado de consciência, pois a leitura feita de forma profunda – mesmo que seja breve – pode desencadear em nós uma transformação interna maravilhosa!
"Em meus livros a filosofia da consciência de Krishna é completamente explicada, de modo que, se houver algo que você não entenda simplesmente leia novamente e repetidas vezes. Por ler diariamente este conhecimento será revelado a você... A melhor maneira de me agradar é lendo meus livros e seguindo as instruções contidas neles”, escreveu ele numa carta em novembro de 74. A literatura de Srila Prabhupada é tão mágica que é capaz de nos oferecer frescor inesgotável e vida espiritual abundante a cada leitura. Só nos resta, portanto, nos aproximarmos dela com uma atitude honesta de oração e com a devida reverência e  humildade. Para terminar, podemos “ruminar” um texto de Srila Prabhupada, quando, ao retornar à Vrindavana já com a saúde precária em maio de 1977, ele disse num tom profundo e grave: "Não há mais nada de novo para ser dito. Tudo que tinha a dizer já está dito em meus livros. Agora procurem compreendê-los e continuem seus esforços".

São Luis do Maranhão, 29/11/2012

sábado, 10 de novembro de 2012

Serei eu um membro da Igreja dos “Mornos”?


Não, não digitei errado. Não estou me referindo aos Mórmons, aqueles da “Igreja de Jesus Cristo dos santos dos últimos dias”. Estou mesmo falando dos mornos – aqueles que não são nem quentes, nem frios. Na Sagrada Bíblia (Apocalipse 3.15-16), o Senhor Krishna (por que não?) fala deles: “Conheço tuas obras: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas, porque és morno, estou para vomitar-te de minha boca”. Portanto, sejamos mais radicais! (etimologicamente falando, é claro). Radical significa firmar-se nas raízes, sem convicções epidérmicas. Significa solidez na postura, na decisão tomada. Radicalidade é uma grande virtude, a virtude de romper com as próprias barreiras e dirigir o olhar para outras possibilidades, mas agarrado às raízes. E o tal do “caminho do meio”? Não confundir caminho do meio com caminho da mediocridade. Limite sim. Mas, será que o limite está sempre exatamente no meio? O grande sábio Confúcio vem em nosso socorro: “Eu sei porque o meio-termo não é seguido. O homem inteligente ultrapassa-o, o medíocre fica aquém”.
Seria um “morno” um medíocre? Aquele que, mesmo entendendo a importância da vida espiritual (e até se proponha a segui-la), acaba recuando diante dos mínimos obstáculos? Seria aquele que é carente de convicção, de determinação, de firmeza? Ou ainda aquele que, mesmo sendo adepto de algumas práticas devocionais, é apático demais para transpor as dificuldades do dia-dia, pois, de fato, não coloca o coração em suas atividades?
Srila Prabhupada disse que a vida espiritual é uma declaração de guerra contra maya. Assim sendo, talvez o morno se enquadre na categoria daquele que não tem suficiente coragem de assumir esta batalha, que não odeia o próprio pecado dentro dele. Quanto a isso, podemos recorrer ao Sri Upadesamrita, onde Srila Rupa Gosvami prevê que uma das nossas mais difíceis batalhas pessoais é certamente contra a nossa tendência ofensiva de cantar a japa ou ler os livros de Srila Prabhupada de forma mecânica (niyama-agraha). Um praticante mecânico é certamente aquele que carece de fervor e, portanto, é morno. Desse modo, suas práticas espirituais são fracas demais para conquistar seus inimigos internos.
Não é difícil reconhecer quando a “mornice” ganha terreno dentro de nós. Nesse momento, surge a apatia, a desmotivação, o descontrole dos sentidos e a empatia ao modo de vida materialista – que é a soma de tudo isso. Mas, quando somos socorridos pelo "fervor devocional" isso não pode acontecer, pois ele vem para nos lembrar de que nada é mais prazeroso do que as discussões filosóficas transcendentais entre devotos, nada é mais interessante do que o estudo detalhado dos livros de Srila Prabhupada, nada é mais gratificante do que uma participação entusiasta nos kirtanas e programas espirituais!
Outra característica da “mornice” é que ela faz com que suas vítimas prefiram falar mais de si mesmo do que trocar experiências verdadeiramente transcendentais de vida. Assim, nas “Igrejas dos Mornos”, as famílias Vaishnavas parecem mais um grupo de estranhos, onde irmãos, sobrinhos e tios espirituais mal cruzam suas histórias, e onde o sentido divino da família maior de Srila Prabhupada é infelizmente substituído por divisões, exclusões e discriminações que podem chegar a patamares inaceitáveis. Quando a “mornice” sobrepõe o “fervor devocional”, ela vem para impedir que o devoto transforme as informações das escrituras em conhecimento prático e experiências geradoras de amor e confiança e, consequentemente, em entusiasmo. Assim, os mornos são, em sua maioria, repetidores de informações – uma massa que teme a arte da crítica saudável, da autocrítica e da dúvida, e, portanto, mal interpretam aqueles que gostam de pensar. Ela, a “mornice”, nos faz viver ansiosos, estressados, deprimidos e até cria condições para o surgimento de doenças emocionais, típicas de não-devotos. Mas, quando, pela graça do guru e de Krishna, o fervor devocional se impõe sobre ela, acompanhado dele vem o desapego, o controle da mente, a lembrança dos maravilhosos exemplos dos acharyas do passado, a meditação nas lilas de Srila Prabhupada e nas suas instruções infalíveis e espiritualmente revigorantes.
“Devia ter amado mais, ter chorado mais (...) devia ter arriscado mais e até errado mais”.
(Manaus, AM, 10/11/2012)

sábado, 3 de novembro de 2012

“Sejamos adeptos do ócio!”

Já havia ouvido falar sobre a importância do ócio na vida do indivíduo. Ao pesquisar me deparei com alguns sinônimos, tais como “repouso, quietação e lazer”, que podem ser considerados positivos e sob a influência da bondade; enquanto outros, como “preguiça, indolência, moleza”, são certamente negativos e inspirados pela ignorância. Entendo que estes diferentes significados de ócio se embolam de tal maneira que, dependendo do contexto, pessoas moles e indolentes podem ser confundidas como estando “na bondade”, enquanto outras, quietas e em repouso, interpretadas como estando “na ignorância”, etc.
De qualquer modo, a palavra ócio tem seu lado bastante nobre – pelo menos em sua origem no latim –, pois significa “o tempo ocupado com coisas que realmente importam”. Por outro lado, a palavra negócio, que vem também do latim negotium, serve para indicar “as ocupações com coisas que negam o valor da vida”, o que, talvez, são chamadas por nós como “trabalhos fruitivos”. Ócio é, portanto, o tempo gasto na autorrealização espiritual, o tempo precioso em que podemos ficar efetivamente por conta de nós mesmos. Por isso, entre os gregos e os romanos, o ócio era colocado na parte superior da escala de valores, o que nos leva a deduzir que um verdadeiro brahmana deve ser adepto ao ócio, ou seja, de uma vida espiritualmente contemplativa, voltada a smaranam, reflexão – prática esta sob a influência da bondade, e que ajuda o indivíduo a reduzir os riscos da vida espiritual.
Lembra que, no início deste texto, citamos o “lazer” como uma das traduções de ócio? Essa tradução nos remete à Gita, quando Krishna explica que se pode controlar a mente “regulando o comer, o dormir, o trabalhar e o recrear (vihara)”. “Assim”, acrescenta o Senhor, “pode-se mitigar as dores da existência material” (G. 6.17). Este conceito de equilibrar o trabalho com o lazer apresentado por Krishna combina totalmente com o conceito de ócio positivo. Não há como negar – inclusive dentro do serviço devocional – que as pausas são momentos ativos e precisamos delas para nos revigorar, para nos descontrair, para respirar melhor. Quanto a isso, podemos citar a música como bom exemplo: ela tem compasso, cresce, diminui, abre espaços para o improviso e também tem suas pausas, as quais não devem ser entendidas meramente como ausência de som, mas como um elemento genuinamente criativo, que permite a respiração rítmica da música. Para não falar do nosso corpo que faz pausa entre o inspirar e o expirar, os universos também têm seu ritmo.  Depois de serem criados, mantidos e aniquilados há uma pausa na engrenagem cósmica e eles se tornam imanifestos por um período. A ideia é que a pausa é absolutamente natural e sagrada e, por isso, o ciclo dos dias e das noites tem orientado as pessoas tanto ao longo dos milênios quanto no dia-dia. Temos uma necessidade vital de interrompermos nossas atividades e tomarmos fôlego para, assim, restaurar nossas forças, acalmarmos a mente e desfrutarmos mais do tempo, o que nos dá plena disposição para gerar novas forças e reiniciarmos novas atividades. Portanto, no contexto da condição humana, trabalho e folga se completam e um ajuda a recompor o outro.
Antes que alguém pergunte, é claro que eu concordo com a importância de se fazer algo prático e produtivo, mas o dia não tem vinte e quatro horas? Ou seja, se formos organizados, há tempo de sobra para, diariamente, deixar que o ócio faça parte de nossa vida. Este tempo é o nosso sadhana, nossas práticas devocionais, especialmente as nossas duas horas diárias da japa, que é o que realmente importa.
Não tenho medo de me confessar: às vezes, canto japa sem exercer a menor pressão sobre mim, sem tentar obstinadamente ouvir cada sílaba do mantra, sem tentar não pensar em nada. E o interessante nisso é que sinto que, em certos momentos, isso me faz muito bem. Cantar caminhando na beira da praia e se deliciando com a sensação agradável que a água produz no contato com o corpo é um tipo de ócio que me faz muito bem, ou me sentar na varanda de Vrajabhumi e esquecer o relógio e mergulhar na leitura do Sri Chaitanya Charitamrta (talvez seja mais ou menos isso que Krishna quer dizer com “inação na ação”).
Esse tempo transcendentalmente ocioso, quando gasto com leituras devocionais e com o canto do santo nome, nos leva a ponderar e rever conceitos. Portanto, esse tempo é mais sagrado e nunca deve ser visto como perdido, pois de que nos adiantaria caminhar rapidamente, mas pelo caminho errado?

(Shantipur Escola, Visconde Mauá, MG, 03/11/2012)

domingo, 21 de outubro de 2012

"E precisamos todos rejuvenescer...".

Você está satisfeito com a qualidade da sua vida espiritual? Sim? Então, tome muito cuidado...

É claro que, por um lado, é importante sentirmos certa satisfação. Afinal, um devoto ou uma devota que conseguiu se livrar do complicado modo da paixão e se fixou no serviço devocional experimenta verdadeiro ruci, ou sabor espiritual em suas atividades. Mas fomos advertidos também da manifestação sutil e condicionante do modo da bondade: o sentimento de satisfação que dá a sensação de conclusão, encerramento, término. Aquela satisfação que não deixa margem para o prosseguimento. Aquela que limita, amortece, engessa. Por isso, o grande escritor e poeta Guimarães Rosa nos cutuca: “o animal satisfeito dorme” – uma provocação altamente cabível.
Um bom livro não é aquele que não queremos que ele acabe? Lembro-me claramente que isso ocorreu comigo quando eu lia o último volume da biografia de Srila Prabhupada. Eu fazia de tudo para não terminar. Eu estava satisfeito com a leitura? Plenamente satisfeito! Mas eu queria mais. Essa é a qualidade da satisfação transcendental. Me lembro também que quando o livro chegou ao fim deixei-o apoiado no meu colo ainda por muito tempo e, cheio de satisfação, fiquei perdido em devaneios espirituais.
Um dos versos que considero dos mais impressionantes e intrigantes é a oração da Rainha Kunti: “Que venham as calamidades!”. Como assim?...
Essa espantosa afirmação dessa maravilhosa devota de Krishna serve para corroborar também a ideia de que a insatisfação é bem-vinda. Definitivamente, não podemos nos render à sedução do repouso e deixar a acomodação engessar a nossa vida espiritual. Portanto, o sentimento de insatisfação pode ser um dos melhores motivos para sairmos da nossa zona de conforto. Em outras palavras, é uma grande misericórdia nos sentirmos desconfortáveis em nossa pequenez. Como já dizia Belchior: “E precisamos todos rejuvenescer”. É claro que materialmente falando isso é impossível. O corpo material inevitavelmente irá envelhecer e não há o que fazer para determos isso. Mas, no campo espiritual, diferente da vida corpórea, podemos sempre rejuvenescer. Isso é vida espiritual (bhavanti hrt-karna rasayana kathah).
Materialmente falando, é um fato que quanto mais vivemos, mais velho ficamos. Mais, quem pratica a vida espiritual tem uma sensação completamente diferente. Parece loucura, mas, se usarmos o fator tempo como medida, para um devoto, o mais velho dele está no passado e não no presente. Como assim? Isso ocorre porque a pessoa em consciência de Krishna está sempre e cada vez mais se surpreendendo positivamente. Desse modo, a cada período, um devoto que vive isso possui cada vez mais qualidade na sua vida espiritual. É como se ele sempre se tornasse uma nova edição dele mesmo – uma edição revista e muitas vezes até ampliada.

(Ashram Vrajabhumi, Teresópolis)

terça-feira, 16 de outubro de 2012

“Tempo – um dos mais escassos artigos de luxo desta era” ou “Agarre o seu dia antes que este se evapore”.

Nesta era de Kali, conseguir tempo para nós mesmos tem se tornado um dos mais escassos e valiosos artigos de luxo. A impressão que fica é que, se nada fizermos para evitar, a velocidade da nossa vida e do nosso mundo só irá aumentar. Talvez seja por isso que as pessoas dizem, “tempo é dinheiro”, no sentido de que ele é valioso demais para ser desperdiçado.
Qual é o conceito Vaishnava de tempo e como ele pode beneficiar uma pessoa?...
Assim como a própria vida, para o Vaishnava o tempo não é uma mercadoria, mas uma completa dádiva, pois ao se fazer uso consciente dele, além de proporcionar avanço espiritual, ele produzirá também alegria e entusiasmo – os mais poderosos antídotos contra o medo, o desânimo e tantas outras armadilhas mentais.
Assim, mesmo em meio às pressões impostas pelos tempos modernos, temos como, através do sadhana-bhakti, perseguir o nosso próprio tempo – que é o tempo que oferecemos para Krishna – pois, sem reservarmos tempo para Ele, não podemos dizer que temos tempo para nós mesmos, quando nossa vida perde o valor, o sentido.
Sem romantismo, o Vaishnava não acredita que os problemas do mundo seriam sanados simplesmente por desacelerar o fluxo natural das coisas. Nem pensa que a solução estaria num retorno generalizado à lentidão. Para ele, a solução é, de acordo com a situação, encontrar o momento certo para cada coisa. Ou melhor, a solução está em acordar cedo e cantar uma boa japa, pois ele sabe que somente assim ele conseguirá agarrar o seu dia antes que este se evapore. Não se trata de escapar das outras atividades, mas é a maneira de criarmos um escudo protetor contra a banalização e limitação das nossas atividades, uma maneira de escaparmos da roda de hamster.
Para o Vaishnava, o tempo é muito mais que uma sequência de datas e compromissos, muito mais que a rígida e implacável ampulheta da vida. Ele é misericórdia divina! Quão grande é a genialidade de Krishna que bondosamente cortou o tempo eterno em fatias, a que damos os nomes de dias, anos, etc.! Por que Ele fez isso? Ora, porque vinte e quatro horas são suficientes para cansarmos da vida. Aí vem a noite, o repouso, e o dia seguinte começa novinho em folha. E o que dizer de doze meses? Definitivamente, eles são mais do que suficiente para entregarmos os pontos e nos refugiarmos em Krishna, quando ganhamos novas chances, novas forças, novas esperanças.
Definitivamente não podemos permanecer o tempo todo vivendo sob a pressão do tempo e da obrigação. Portanto, para que o tempo seja mais valorizado e observado, Srila Prabhupada criou os Ashrams, pois, fora deles, fica muito difícil configurar o curso dos nossos dias de modo a viver intensamente os momentos sagrados. De fato, as práticas devocionais de um Ashram nos oferecem reais e totais possibilidades de imergirmos na espiritualidade, de cultivarmos nossa relação amorosa com Krishna, que está não somente ali no altar belamente decorado, mas também Se manifesta no ambiente natural do campo. Não há dúvidas de que os Ashrams podem nos ajudar anos retirar da influência do fator tempo, pois, quando dedicado à japa, aos bhajans, à leitura devocional, à adoração, o tempo assume o papel de um grande presente de Deus e pode – paradoxalmente – nos transferir à eternidade. Caso contrário, sem nos ocuparmos devidamente no serviço a Krishna, sentimos o tempo escorrer pelos dedos.
No Ashram, estando despertos na madrugada, durante o brahma-muhurta, podemos nos deleitar com uma atmosfera única, que, ao ser bem aproveitada, nos leva à uma japa altamente contemplativa. E, mesmo que não consigamos prestar atenção a cada uma das palavras do maha-mantra, podemos vislumbrar grandes sensações, como a liberdade da mente. Na atmosfera sagrada do Ashram nos sentimos confortavelmente acolhidos por Krishna e percebemos mais nitidamente a misericórdia de Srila Prabhupada!
É uma grande lástima que a maioria das pessoas não possa viver como nós, assim como também não podemos aceitar viver como elas. A conclusão é que devemos nos organizar o melhor possível para que aqueles que nos visitam possam pelo menos observar o ritmo do Ashram e assim constatar que, infelizmente, a sociedade moderna tem levado uma vida antinatural e arriscada, pois, ao trocar o dia pela noite, pode-se pagar um preço muito caro: pode-se perder-se de si mesmo...

“Nascendo e se pondo, o Sol diminui a duração de vida de todos, Exceto daquele que utiliza o tempo discutindo tópicos sobre a excelente Personalidade de Deus” (Bhag. 3.17.17).

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

"O que é um devoto? (parte 2) ou “Um exemplo vivo dos ensinamentos de Srila Prabhupada!”.

Ser devoto significa não se sentir a causa do próprio avanço espiritual e muito menos culpar alguém por seu regresso. Nem significa manifestar somente desejos imaculados. Ou seja, a mente de um devoto pode produzir pensamentos e desejos indesejáveis, mas ele a observa com atenção e exercita constantemente o seu gerenciamento para, assim, poder ter controle sobre suas emoções.
Um devoto não é perito em resolver unicamente os problemas externos, mas dá também total atenção aos internos. Não significa que ele está disposto unicamente a ajudar aos outros, mas é também humilde a ponto de pedir ajuda deles. Ele é sempre transparente e estabelece relacionamentos verdadeiramente confiáveis, sabe em quem confiar e se comporta de modo a ser também absolutamente confiável, pois é muito consciente da importância de ser uma excelente associação para os outros. Entendendo que é possível avançar em conhecimento e prática a cada dia e sempre, sua vida gira em torno de cultivar a veracidade, de desenvolver gestos, atitudes e hábitos devocionais. Com isso, ele nunca se lamenta, nem deseja nada materialmente, e substitui a propensão a criticar pela propensão a elogiar. Mas tudo isso são características secundárias externas do devoto. Sua principal característica, e de onde surgem naturalmente as outras, é que sua meta está claramente definida: tornar-se um exemplo vivo dos ensinamentos de Srila Prabhupada! Assumindo para si a responsabilidade de representá-lo da maneira mais impecável possível, ele não apenas é adornado com belíssimas e profundas qualidades devocionais, mas contribui na perpetuação das glórias imensuráveis de Sua Divina Graça!

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O que é um devoto? (Parte 1)

Ser um devoto não quer dizer ser impecavelmente perfeito, acertar sempre, manifestar o máximo de excelência em todos os campos de atuação. Muito menos, nunca falhar, não cometer o menor erro, não ter nenhum momento de fragilidade, não recuar, não chorar. O devoto chora, mas não se lamenta, pois usa sua lágrima como combustível que alimenta o fogo do desejo de reconstruir sua personalidade devocional. O devoto também erra, mas faz de seu erro uma oportunidade de cultivar humildade verdadeira e, assim, não cria máscaras para se esconder atrás delas.
Ser devoto não significa ser simplesmente todo-poderoso e, por conta própria, cruzar qualquer barreira ou superar qualquer obstáculo que a vida lhe impuser. Diante da poderosa energia material o devoto admite sua pequenez e fragilidade. Assim, para se livrar da repetição dos erros, ele usa os possíveis fracassos do dia-dia para corrigir rotas e melhorar o seu desempenho.
Quando tudo se encaminha bem, o devoto é adepto da humildade e da simplicidade, mas, ao mesmo tempo, se mantém atento para as possíveis mudanças do tempo. Quando as coisas se tornam difíceis, ele é amante da gravidade e da introspecção, mas continua amigo da humildade e da simplicidade, pois sabe que elas são as raízes da paciência e da tolerância – qualidades imprescindíveis para quem se propõe a cruzar qualquer tempestade.
O devoto tem motivos de sobra para nunca desacreditar da vida espiritual, para nunca desistir ou perder a determinação, pois sua mente, purificada pelo santo nome, o ensinou a arte de destilar sabedoria dos momentos difíceis. Seu coração, suavizado por austeridades voluntárias, aprendeu a fazer escolhas, que não incluem apenas ganhos, mas implica principalmente em perdas conscientes.
Ser devoto significa entender que cada ser é um diamante infinitamente valioso, uma das obras-primas mais perfeitas de Krishna. Significa respeitar a individualidade de todos e saber que, mesmo tendo sido escrita com insegurança, frustração e falhas, toda vida é também ilustrada com parcelas de sinceridade, ousadia e sucesso. Para um devoto que entende que a vida que pulsa dentro dele – e, certamente, dentro de todos – é o próprio Krishna, como poderia ser diferente? Como ele poderia deixar de respeitar alguém – incluindo a si mesmo – se ele sabe que cada ser é um mundo maravilhoso a ser explorado, um diamante a ser lapidado, um jardim a ser cultivado? Ser devoto significa entender que só existimos porque Krishna existe, e que, assim como a alma dá vida ao corpo, Ele dá vida à alma.
Ser devoto não significa fazer parte de uma massa que teme a arte da crítica saudável, dissimula a dúvida, ou duvida de tudo e, quando mal interpreta os verdadeiros pensadores, tece críticas inescrupulosas. Ele aprende com a experiência alheia – não para repetir a dor dos que vieram antes, mas para seguir os passos das grandes almas do presente e do passado.
Um verdadeiro devoto está tão empenhado em proteger seu tesouro interior, obtido pela graça do guru, e tão ocupado em cuidar da sua trepadeira da devoção, que nunca vê motivos se deprimir ou perder o entusiasmo. Sua gratidão é tamanha que, mesmo quando é contrariado ou criticado, não sente a menor pena de si mesmo, pois se compara ao pobre garimpeiro que, depois de passar a vida toda removendo cascalhos, finalmente encontrou o maior de todos os diamantes!

sábado, 6 de outubro de 2012

"O maior espetáculo da existência" ou "A rendição a Krishna provocada pelo santo nome".

Já havia me programado. De manhãzinha eu sairia para caminhar na praia para cantar japa e na volta escreveria algo sobre o silêncio. Mal saio da porta principal do prédio, viro para a direita, e me deparo com dois rapazes dormindo em “camas” de caixas de papelão. Eram quase sete horas e a rua já estava movimentada e, apesar do forte barulho do caminhão que descarregava bebidas, dos latidos de dois cães que não se “bateram”, etc., eles desfrutavam da tranquilidade do seu “leito de papelão”. Como assim?...
Será que toda essa poluição sonora já está tão entranhada em suas mentes que nada os incomoda? Afinal, isso é bom?... É claro que não! Certamente, acostumar-se a condições sub-humanas e adaptar-se a situações tão precárias não pode ser um bom sinal, o que me leva a refletir, “Será que isso também não está ocorrendo comigo?”, “Será que o meu canto da japa, misturado com os barulhos interiores provocados pela mente agitada, não é um indício de que eu acabei me acostumando com uma péssima qualidade de japa?”, “Ou talvez tenha adaptado a mais importante prática espiritual diária à uma atividade mecânica e quase sem sentido?”, ou ainda: “Será que eu estou saindo realmente para cantar japa ou vou dar simplesmente um passeio na praia com a japa na mão?”. Oxalá o compassivo Krishna faça com que eu consiga ouvir os santos nomes e pare (ou pelo menos diminua) de ouvir meus barulhos interiores!...
Chego à praia e me deparo com pessoas se exercitando, levando seus animais de estimação para passear, praticando esportes, conversando, bebendo suas águas de coco... Ó meu Deus, já que me parece impossível esvaziar a cabeça de todos os pensamentos, palavras e imagens, de alguma forma meus ruídos internos precisam se transformar em sons mais neutros e pacíficos! E essa importante transformação é uma das maravilhas feita pelos santos nomes de Krishna, os quais, por si sós, nos ajudam efetivamente a lidar positivamente com nossas emoções, já que não há como acabar com elas.
"Como são construídas as cadeias dos nossos pensamentos, qual é a natureza deles, e como as emoções se transformam em frações de segundos?" Entender um pouco mais sobre o funcionamento da mente pode nos ajudar (a metapsicologia freudiana e os fenomenólogos de plantão que o digam), já que temos que transformar o nosso “sentir, pensar e desejar” material em “sentir, pensar e desejar” espiritual. O grau de complexidade de tudo isso é tamanho que só há uma conclusão: somente a misericórdia dos santos nomes pode nos salvar e nos ajudar a realizarmos o maior espetáculo da existência: a rendição a Krishna!  Caso contrário, como conseguiríamos (ao mergulhar em nossa memória) resgatar, em uma fração de segundos, informações capazes de se transformar em emoções puramente consciente de Krishna?  (Vale lembrar que em nossa memória existem bilhões de opções de informações mundanas). Como opera em nós uma enorme gama de milagres, o cantar é a mais perfeita demonstração do processo de bhakti! Pois é ele o responsável direto por nos dar smrti, a memória espiritual (Gita 15.15). Como poderia ser diferente? Sem a intervenção misericordiosa do santo nome de Krishna, como seria possível, no escuro de nossa mente, confeccionarmos pensamentos espirituais?... É claro que por muitas vezes experimentamos também algumas misérias mentais, mas isso não tem nada ver com Krishna, e sim com nossas impurezas.
A conclusão é: como desanimar na vida espiritual ou perder a esperança diante da grandeza da infinita misericórdia do santo nome de Krishna?

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Desentupindo nosso canal de comunicação com Krishna

Nos Ensinamentos da Rainha Kunti, Srila Prabhupada diz que ao visitarmos o Templo para termos darshan das Deidades devemos considerar nossa incapacidade de realmente Vê-Las em Sua plenitude, uma vez que nossos olhos - cobertos pelas "cataratas da ignorância" - não são capazes de acessar a verdadeira forma transcendental que está diante de nós. Portanto, melhor do que irmos ao Templo unicamente para vermos as Deidades seria nos aproximarmos Delas cientes de que seremos vistos por Elas, o que fará total diferença.
Isso me fez pensar que este mesmo conceito pode ser projetado em nossa prática diária da japa. Assim, ao invés de cantar os santos nomes no espírito de simplesmente nos dirigirmos a Krishna, de falarmos com Ele, podemos nos transformar em pedintes: "Ó Senhor, fale comigo! Se dirija misericordiosamente a mim e me agracie com Suas valiosas orientações!". Assim, quando a nossa japa se torna um encontro marcado entre nós e Ele, o momento em que praticamos se torna o mais especial e mais aguardado do dia! E o resultado disso é que o tempo se eleva da dimensão humana à dimensão divina, quando o nosso dia ganha uma qualidade completamente especial. Portanto, pelo menos no momento mágico da japa, esqueçamos o tempo!... Que besteira é esta de achar que podemos “possuí-lo”, “tomá-lo” ou “gastá-lo”? Você gostaria de se aproximar de alguém por algum motivo importante e perceber que esta pessoa está mais preocupada em c
onsultar o relógio do que em ouvi-la atentamente?

Durante o canto, somente uma boa qualidade de atitude mental  pode nos ajudar a entender se conseguimos realmente perceber a não-diferença entre Krishna e Seu santo nome.
O quanto acreditamos nisso? 
O quanto sentimos isso?
Estamos certos de que Ele está ali pessoalmente diante de nós?...
Tudo é uma questão de o quanto conseguimos desentupir o nosso canal de comunicação com Ele.